Professor por vocação

Professor por vocação
Nós...

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Dona Carolina

Por Jorge Miguel Marinho
(professor de literatura, ator e roteirista, premiado escritor brasileiro e amante da literatura machadiana)


"Depois... depois, querida, queimaremo o mundo, porque só é verdadeiramente senhor do mundo quem está acima das suas glórias fofas e das suas ambições estéreis. Estamos ambos neste caso; amamo-nos; e eu vivo e morro por ti."


Estas palavras, com um tom de herói romântico, são de Machado de Assis e fazem parte de uma carta íntima. Uma carta escrita para sua futura companheira, Carolina Augusta Xavier de Novais, para nós e para quem teve o privilégio de conviver com ela, simplesmente Dona Carolina.

Nascida em Portugal, culta e solícita, veio para o Brasil cuidar do irmão, o pota Faustino Xavier de Noveis, e foi numa visita de Machado ao amigo doente que os dois apenas deixaram o amor acontecer.

Foi amor à primeira vista, e esquecendo um pouco o ceticismo de Machado, esse amor se eternizou pelo tempo da sua duração: foram trinta e cinco anos de terna e eterna convivência, como se Dona Carolina viesse de Portugal para a enseada mais amorosa de Machado e Machado estivesse predestinado a escrever as suas melhores palavras, primeiro para os olhos sensíveis, críticos e cuidadosos de sua mulher.

Ela cuidou dele e construiu para ele um universo caseiro que se tornou para Machado de Assis a sua mais segura moradia interior.

Costurava suas roupas pondo esmero na rotina. Fazia o seu prato fatiando as carnes e os peixes, sendo também a senhora da sua alimentação. Cuidava da saúde sempre frágil do marido com discreta prontidão. Havia um código entre eles e, ao menor sinal de um ataque epilético, ela protegia o marido dos olhares dos outros nos retiros mais íntimos de um casal. Dizem que era precavida a ponto de trazer rolhas nos bolsos do avental para atenuar a violência das imprevisíveis convulsões.

Todas as manhãs lia os escritos do marido com a fidelidade e a exigência da sua leitora maior. Passava a limpo os originais trocando uma palavra por outra, fazendo sugestões. Era versada em gramática, conhecia muito bem os clássicos portugueses e outras literaturas e, lá na sua terra havia convivido com Camilo Castelo Branco e outros escritores e intelectuais.

Machado abria os braços para tudo o que viesse dela e oferecia o seu maior abraço vindo espontâneo da sua mais correta timidez.

Não é difícil imaginar os dois sentados numa cadeira de balanço dupla, um ao lado do outro, de mãos dadas, vivendo o silêncio das lembranças que vão e vêm. Là em Petrópolis, ela copiando trechos de Memórias Póstumas de Brás Cubas ditados por Machado, que não estava nada bem da vista. Os filhos que não tiveram, os problemas econômicos no início do casamento, a cadelinha chamada Graziela, o jogo de xadrez. E lá no passado mais remoto a família contra o casamento dela com um mulato, de origem humilde, e ela, decidida, apenas anunciando a comunhão:
"Não peço licença. Apenas COMUNICO que vou me casar!"

Quatro anos antes da morte de Machado, contra a vontade de Dona Carolina, que queria cuidar do marido até o fim, ela "se foi". Digamos que para ele provisoriamente, como escreveu ao amigo Joaquim Nabuco numa carta que aqui e ali, se confessa assim:
"Foi-se a melhor parte da minha vida (...) Tudo me lembra a minha meiga Carolina (...) Irei vê-la. Ela me esperará."


Nenhum comentário:

Postar um comentário