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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ficções do Interlúdio - Análise

"Um dia,
lá para o fim do futuro,
alguém escreverá sobre mim um poema,
e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino."
Ficções do Interludio


Observe este outro trecho de O Guardador de Rebanhos, poema XX:
A nota preliminar que segue é um apontamento solto de Fernando Pessoa, não datado e não assinado, publicado, pela primeira vez, na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, RJ, Aguilar, 1960.

Nota preliminar

“Umas figuras insiro em contos, ou em subtítulos de livros, e assino com o meu nome o que elas dizem; outras projeto em absoluto e não assino senão com o dizer que as fiz. Os tipos de figuras distinguem-se do seguinte modo: nas que destaco em absoluto, o mesmo estilo, me é alheio, e se a figura o pede, contrário, até, ao meu; nas figuras que subscrevo não há diferença do meu estilo próprio, senão nos pormenores inevitáveis, sem os quais elas se não distinguiriam entre si.

Compararei algumas destas figuras, para mostrar, pelo exemplo, em que consistem essas diferenças. O ajudante de guarda-livros Bernardo Soares e o Barão de Teive - são ambas figuras minhamente alheias - escrevem com a mesma substância de estilo, a mesma gramática e o mesmo tipo e forma de propriedade: é que escrevem com o estilo que, bom ou mau, é o meu. Comparo as duas porque são casos de um mesmo fenômeno - a inadaptação à realidade da vida, e, o que é mais, a inadaptação pelos mesmos motivos e razões. Mas, ao passo que o português é igual no Barão de Teive e em Bernardo Soares, o estilo difere em que o do fidalgo é intelectual, despido de imagens, um pouco como o direi?, hirto e restrito; e o do burguês é fluido, participando da música e da pintura, pouco arquitectural. O fidalgo pensa claro, escreve claro, e domina as suas emoções, se bem que não os seus sentimentos: o guarda-livros nem emoções nem sentimentos domina, e quando pensa é subsidiariamente a sentir.

Há notáveis semelhanças, por outra, entre Bernardo Soares e Álvaro de Campos. Mas, desde logo, surge em Álvaro de Campos o desleixo do português, o desatado das imagens, mais íntimo e menos propositado que o de Soares.

Há acidentes do meu distinguir uns de outros que pesam como grandes fardos no meu discernimento espiritual. Distinguir tal composição musicante de Bernardo Soares de uma composição de igual teor que é a minha.

Há momentos em que o faço repentinamente, com uma perfeição de que pasmo; e pasmo sem imodéstia, porque, não crendo em nenhum fragmento de liberdade humana, pasmo do que se passa em mim como pasmaria do que se passasse em outros - em dois estranhos.

Só uma grande intuição pode ser bússola nos descampados da alma; só com um sentido que usa da inteligência, mas se não assemelha a ela, embora nisto com ela se funda, se pode distinguir estas figuras de sonho na sua realidade de uma a outra.

Nestes desdobramentos de personalidade ou, antes, invenções de personalidades diferentes, há dois graus ou tipos, que estarão revelados ao leitor, se os seguiu, por características distintivas. No primeiro grau, a personalidade distingue-se por ideias e sentimentos próprios, distintos dos meus, assim como, em mais baixo nível desse grau, se distingue por ideias, postas em raciocínio ou argumento, que não são minhas, ou, se o são, o não conheço. O Banqueiro Anarquista é um exemplo deste grau inferior; o Livro do Desassossego, e a personagem Bernardo Soares, são o grau superior.

Há o leitor de reparar que, embora eu publique (publicasse) o Livro do Desassossego como sendo de um tal Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, o não incluí todavia nestas “Ficções do Interlúdio“. E que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se distingue de mim pelo estilo de expor. Dou a personalidade diferente através do estilo que me é natural, não havendo mais que a distinção inevitável do tom especial que a própria especialidade das emoções necessariamente projeta.

Nos autores das “Ficções do Interlúdio“ não são só as ideias e os sentimentos que se distinguem dos meus: a mesma técnica da composição, o mesmo estilo, é diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada. Por isso nas “Ficções do Interlúdio“ predomina o verso. Em prosa é mais difícil de se outrar.

Dividiu Aristóteles a poesia em lírica, elegíaca, épica e dramática. Como todas as classificações bem pensadas, é esta útil e clara; como todas as classificações, é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade íntima, e, se analisarmos bem aquilo de que se compõem, verificaremos que da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua. Com efeito, e indo às mesmas origens da poesia dramática - Ésquilo por exemplo - será mais certo dizer que encontramos poesia lírica posta na boca de diversos personagens.

O primeiro grau da poesia lírica é aquele em que o poeta, concentrado no seu sentimento, exprime esse sentimento. Se ele, porém, for uma criatura de sentimentos variáveis e vários, exprimirá como que uma multiplicidade de personagens, unificadas somente pelo temperamento e o estilo. Um passo mais, na escala poética, e temos o poeta que é uma criatura de sentimentos vários e fictícios, mais imaginativo do que sentimental, e vivendo cada estado de alma antes pela inteligência que pela emoção. Este poeta exprimir-se-á como uma multiplicidade de personagens, unificadas, não já pelo temperamento e o estilo, pois que o temperamento está, substituído pela imaginação, e o sentimento pela inteligência, mas tão-somente pelo simples estilo. Outro passo na mesma escala de despersonalização, ou seja de imaginação, e temos o poeta que em cada um dos seus estados mentais vários se integra de tal modo nele que de todo se despersonaliza, de sorte que, vivendo analiticamente esse estado da alma, faz dele como que a expressão de um outro personagem, e, sendo assim, o mesmo estilo tende a variar. Dê-se o passo final, e teremos um poeta que sela vários poetas, um poeta dramático escrevendo em poesia lírica. Cada grupo de estados de alma mais aproximados insensivelmente se tornará uma personagem, com estilo próprio, com sentimentos porventura diferentes, até opostos, aos típicos do poeta na sua pessoa viva. E assim se terá levado a poesia lírica - ou qualquer forma literária análoga em sita substância à poesia lírica - até à poesia dramática, se todavia se lhe dar a forma de drama, nem explícita nem implicitamente.

Suponhamos que um supremo despersonalizado, como Shakespeare, em vez de criar o personagem de Hamlet como parte de um drama, o criava como simples personagem, sem drama. Teria escrito, por assim dizer, um drama de uma só personagem, um monólogo prolongado e analítico. Não seria legítimo ir buscar a esse personagem uma definição dos sentimentos e dos pensamentos de Shakespeare, a não ser que o personagem fosse falhado, porque o mau dramaturgo é o que se revela.

Por qualquer motivo temperamental que me não proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria.

Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler.

Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do “Guardador de Rebanhos”, com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso da blasfémia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, histero-epiléptico, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.

Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.”

Poemas de Alberto Caeiro

A introdução que segue é um apontamento solto de Ricardo Reis, publicado, pela primeira vez, na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, RJ, Aguilar, 1960.

Introdução

“Nestes poemas aparentemente tão símplices, o crítico, se se dispõe a uma análise cuidada, hora a hora se encontra defronte de elementos cada vez mais inesperados, cada vez mais complexos. Tomando por axiomático aquilo que, desde logo, o impressiona, a naturalidade e espontaneidade dos poemas de Caeiro, pasma de verificar que eles são, ao mesmo tempo, rigorosamente unificados por um pensamento filosófico que não só os coordena e concatena, mas que ainda mais prev6e defeitos por uma integração deles na substância espiritual da obra. Assim, dando-se Caeiro por um poeta objetivo, como é, nós encontramo-lo, em quatro das suas canções, exprimindo impressões inteiramente subjetivas. Mas não temos a satisfação cruel de poder supor-nos a indicar-lhe que errou. No poema que imediatamente precede essas canções, ele explica que elas foram escritas durante uma doença, e que, portanto, t6em por força que ser diferentes dos seus poemas normais, por isso que a doença não é a saúde.

E assim o crítico não chegue a conduzir aos lábios a taça da sua satisfação cruel. Se quiser Ter a alegria, um pouco menos concreta, de apontar outros pecados contra a teoria íntima da obra toda, vê-se confrontado por poemas como… e o …, onde a sua objeção já está feita, e a sua questão respondida.

Só quem pacientemente, e com o espírito pronto, ler esta obra pode avaliar o que esta previsão, esta coer6encia intelectual (mais ainda do que sentimental) tem de desconcertante.

Tudo isto, porém, é verdadeiramente o espírito pagão. Aquela ordem e disciplina que o paganismotinha, e o cristismo nos fez perder, aquela inteligência raciocinada das coisas, que era seu apanágio e não é nosso, está ali. Porque, se fala na forma aqui está a essência. E não é forma exterior do paganismo- repito - que Caeiro veio reconstruir; é a essência que chamou do Averno, como Orfeu a Eurídice, pela magia harmônica (melódica) da sua emoção.

Quais são, para meu critério, os defeitos desta obra? Dois só, e eles pouco empanam o seu fulgor irmão dos deuses.

Falta, nos poemas de Caeiro, aquilo que devia completá-los: a disciplina exterior, pela qual a força tomasse a coerência e a ordem que reina no íntimo da Obra. Ele escolheu, como se ve, um verso que embora fortemente pessoal - como não podia deixar de ser -, e ainda o verso livre dos modernos.

Não subordinou a expressão a uma disciplina comparável àquela a que subordinou quase sempre a emoção e sempre, a idéia. Perdoa-se-lhe a falta, porque aos inovadores muito se perdoa; mas não se pode omitir que seja uma falta, e não uma distinção.

Semelhantemente, a emoção enferma ainda um pouco do meio cristão em que surgiu para este mundo a alma do poeta. A idéia, sempre essencialmente pagã, usa por vezes um traje emotivo que não lhe é adequado. Em “O Guardador de Rebanhos“ há um aperfeiçoamento gradual neste sentido: os poemas finais - e sobretudo os quatro ou cinco que precedem os dois últimos - são de uma perfeita unidade idéia-emotiva. Eu perdoaria ao poeta que ele houvesse assim permanecido ainda escravo de certos apetrechos sentimentais da mentalidade cristista, se ele nunca, até ao fim da obra, se conseguisse libertar deles. Mas se, a dada altura da sua evolução poética, ele o fez, culpo-o, e severamente o culpo (como severamente, em pessoa, o culpei) de são voltar aos seus poemas anteriores, ajustando-os à sua disciplina adquirida, e, se alguns a essa disciplina se não sujeitassem, riscando-os inteiramente. Mas a coragem de sacrifica o que se fez é a que mais escasseia ao poeta. Tão mais difícil é refazer que fazer a primeira vez. Verdadeiramente, ao invés do que diz o prolóquio gálico, é o último passo o que mais custa.

Assim eu acho …º poema, tão irritantemente enternecedor para um cristão, absolutamente deplorável para um poeta objetivo, para um reconstrutor da essência do paganismo. Nesse poema desce-se às últimas baixezas do subjetivismo cristista, indo até àquela mistura do objetivo com o subjetivo que é o distintivo doentio dos mais doentios dos modernos (desde certos pontos da obra intolerável do infeliz chamado Victor Hugo até à quase totalidade da magma amorfa que faz às vezes de poesia entre os nosso contemporâneos místicos).

Exagero, porventura, e abuso. Tendo aproveitado a ressurreição do paganismo que Caeiro conseguiu, e tendo como todos os aproveitadores conseguido a fácil arte secundária de aperfeiçoar, é talvez ingrato que me revolte contra os defeitos inerentes à inovação com que aproveitei. Mas, se os acho defeitos, tenho, embora os desculpe, que os apelidar de tais, Magis amica veritas.”

Odes De Ricardo Reis

A nota preliminar que segue é um apontamento solto de Álvaro de Campos publicado, pela primeira vez, na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, RJ, Aguilar, 1960.

“O nosso Ricardo Reis teve uma inspiração feliz se é que ele usa inspiração, pelo menos por fora das explicações, quando reduziu a seis linhas a sua arte poética:
Não a arte poética, mas a sua. Que ele ponha na mente activa o esforço só da «altura» (seja isso o que for), concedo, se bem que me pareça estreita uma poesia limitada ao pouco espaço que é próprio dos píncaros. Mas a relação entre a altura e os versos de um certo número de sílabas é-me mais velada. E, é curioso, o poema, salvo a história da altura, que é pessoal, e por isso fica com o Reis, que aliás a guarda para si, é cheio de verdade:

Que quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.


Ressalvando que pensamento deve ser emoção, e, outra vez, a tal altura, é certo que, concebida fortemente a emoção, a frase que a define espontaneíza-se, e o ritmo que a traduz surge pela frase fora. Não concebo, porém, que as emoções, nem mesmo as do Reis, sejam universalmente obrigadas a odes sáficas, ou alcaicas, e que o Reis, quer diga a um rapaz que lhe não fuja, quer diga que tem pena de ter que morrer, o tenha forçosamente que fazer em frases súbditas que por duas vezes são mais compridas e por duas vezes mais curtas, e em ritmos escravos que não podem acompanhar as frases súbditas senão em dez sílabas para as duas primeiras, e em seis sílabas as duas segundas, num graduar de passo desconcertante para a emoção.
Não censuro o Reis mais que a outro qualquer poeta. Aprecio-o, realmente, e para falar verdade, acima de muitos, de muitíssimos. A sua inspiração é estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis. Mas é um grande poeta - aqui o admiro - , se é que há grandes poetas neste mundo fora do silêncio de seus próprios corações.”

Poesias de Álvaro de Campos

A nota preliminar que segue é um apontamento solto de Ricardo Reis publicado, pela primeira vez, na primeira edição da Obra Poética de Fernando Pessoa, RJ, Aguilar, 1960.

Nota Preliminar

Um poema é a projeção de uma idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base da poesia: é tão-somente o meio de que a idéia se serve para se reduzir a palavras.
Não vejo, entre a poesia e a prosa, a diferença fundamental, peculiar da própria disposição da mente, que Campos estabelece. Desde que se usa de palavras, usa-se de um instrumento ao mesmo tempo emotivo e intelectual. A palavra contém uma idéia e uma emoção. Por isso não há prosa, nem a mais rigidamente científica, que não ressume qualquer suco emotivo. Por isso não há exclamação, nem a mais abstratamente emotiva, que não implique, ao menos, o esboço de uma idéia.
Poderá alegar-se, por exemplo, que a exclamação pura - “Ah “, digamos - não contém elemento algum intelectual. Mas não existe um “ah “, assim escrito isoladamente, sem relação com qualquer coisa de anterior. Ou consideramos o “ah ” como falado e no tom da voz vai o sentimento que o anima, e portanto a idéia ligada à definição desse sentimento; ou o “ah ” responde a qualquer frase, ou por ela se forma, e manifesta uma idéia que essa frase provocou.
Em tudo que se diz - poesia ou prosa - há idéia e emoção. A poesia difere da prosa apenas em que escolhe um novo meio exterior, além da palavra, para projetar a idéia em palavras através da emoção. Esse meio é o ritmo, a rima, a estrofe; ou todas, ou duas, ou uma só. Porém meno que uma só não creio que possa ser.
A idéia, ao servir-se da emoção para se exprimir em palavras, contorna e define essa emoção, e o ritmo, ou a rima, ou a estrofe, são a projeção desse contorno, a afirmação da idéia através de uma emoção, que, se a idéia a não contornasse, se extravasaria e perderia a própria capacidade de expressão.
É o que, em meu entender, sucede nos poemas de Campos. São um extravasar de emoção. A idéia serve a emoção, não a domina. E o homem - poeta ou não poeta - em quem a emoção domina a inteligência recua a feição do seu ser a estádios anteriores da evolução, em que as faculdades de inibição dormiam ainda no embrião da mente. Não pode ser que arte, que é um produto da cultura, ou seja do desenvolvimento supremo da consciência que o homem tem de si mesmo, seja tanto mais superior, quanto maior for a sua semelhança com as manifestações mentais que distinguem os estados inferiores da evolução cerebral.
A poesia é superior à prosa porque exprime, não um grau superior de emoção, mas, por contra, um grau superior do domínio dela, a subordinação do tumulto em que a emoção naturalmente se exprimiria (como verdadeiramente diz Campos) ao ritmo, à rima, à estrofe.
Como o estado mental, em que a poesia se forma, é, deveras, mais emotivo que aquele em que naturalmente se forma a prosa, há mister que ao estado poético se aplique uma disciplina mais dura que aquela [que] se emprega no estado prosaico da mente. E esses artifícios - o ritmo, a rima, a estrofe - são instrumentos de tal disciplina.
No sentido em que Campos diz que são artifícios o ritmo, a rima e a estrofe, se pode dizer que são artifícios: a vontade que corrige defeitos, a ordem que policia sociedades, a civilização que reduz os egoísmos à forma sociável.
Na prosa mais propriamente prosa - a prosa científica ou filosófica -, a que exprime diretamente idéias e só idéias, não há mister de grande disciplina, pois na própria circunstância de ser só de idéias vai disciplina bastante. Na prosa mais largamente emotiva, como a que distingue a oratória, ou tem feição descritiva, há que atender mais ao ritmo, à disposição, à organização das idéias, pois essas são ali em menor número, nem formam o fundamento da matéria. Na prosa amplamente emotiva - aquela cujos sentimentos poderiam com igual facilidade ser expostos em poesia - há que atender mais que nunca à disposição da matéria, e ao ritmo que acompanhe a exposição. Esse ritmo não é definido, como o é no verso, porque a prosa não é verso. O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos versos. Campos é um grande prosador, um prosador com uma grande ciência do ritmo; mas o ritmo de que tem ciência, é o ritmo da prosa, e a prosa de que se serve é aquela em que se introduziu, além dos vulgares sinais de pontuação, uma pausa maior e especial, que Campos, como os seus pares anteriores e semelhantes, determinou representar graficamente pela linha quebrada no fim, pela linha disposta como o que se chama um verso. Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de pontuação - digamos o traço vertical ( | ) - para determinar esta ordem de pausa, ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a confusão que estabeleceu.
A disciplina é natural ou artificial, espontânea ou refletida. O que distingue a arte clássica, propriamente dita, a dos gregos e até dos romanos, da arte pseudoclássica, como a dos franceses em seus séculos de fixação, é que a disciplina de uma está nas mesmas emoções, com uma harmonia natural da alma, que naturalmente repele o excessivo, ainda ao senti-lo; e a disciplina da outra está em uma deliberação da mente de não se deixar sentir para cima de certo nível. A arte pseudoclássica é fria porque é uma regra; a clássica tem emoção porque é uma harmonia.
Quase se conclui do que diz Campos, de que o poeta vulgar sente espontaneamente com a largueza que naturalmente projetaria em versos como os que ele escreve; e depois, refletindo, sujeita essa emoção a cortes e retoques e outras mutilações ou alterações, em obediência a uma regra exterior. Nenhum homem foi alguma vez poeta assim. A disciplina do ritmo é aprendida até ficar sendo uma parte da alma: o verso que a emoção produz nasce já subordinado a essa disciplina. Uma emoção naturalmente harmônica é uma emoção naturalmente ordenada; uma emoção naturalmente ordenada é uma emoção naturalmente traduzida num ritmo ordenado, pois a emoção dá o ritmo e a ordem que há nela, a ordem que no ritmo há.
Na palavra, a inteligência dá a frase, a emoção o ritmo. Quando o pensamento do poeta é alto, isto é, formado de uma idéia que produz uma emoção, esse pensamento, já de si harmônico pela junção equilibrada de idéia e emoção, e pela nobreza de ambas, transmite esse equilíbrio de emoção e de sentimento à frase e ao ritmo, e assim, como disse, a frase, súdita do pensamento que a define, busca-o, e o ritmo, escravo da emoção que esse pensamento agregou a si, o serve.

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