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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Transpaixão - Waldo Motta - Análise

Transpaixão - Waldo Motta

Olá!

Transpaixão é uma coletânea de poemas selecionados de vários livros. Nas quatro vertentes temáticas (social, existencial, metapoética e erótica) em que a obra se divide, o poeta mostra o seu processo de evolução estética e maturação espiritual. Porém, a maior novidade desta obra, indicada para o Vestibular da UFES 2010-2012, está em fundir homoerotismo e religião.

“No meio do caminho tinha uma pedra” (Drummond). A pedra filosofal, a pedra teosófica, a pedra da igreja apostólica, a pedra de toque, a pedra onde repousou a cabeça de Jacó. Eis aí uma metáfora que percorre milenarmente o universo religioso / místico e cujo significado se revela – simples e claro – no verso místico de Waldo Motta: “No meio do caminho, eis a pedra”.

Waldo lançou recentemente a segunda edição, revista e ampliada, de Transpaixão (edições Kabungo), livro recomendado para o vestivular 2009 da Universidade Federal do Espírito Santo.

Penso que a questão da verdade, esta última das coisas, aquilo que abriria enfim o “pequeno embrulho” do Drummond, foi por demais perseguida pela filosofia nos últimos séculos, tendo como grave certeza a de que os mecanismos da razão humana seriam o principal farol / instrumento dessa busca.

E como tais “verdades” soassem um tanto quanto duvidosas, costurou-se / construiu-se uma personalidade intelectual necessariamente cética e, por conseguinte, distanciada, principalmente no que se refere ao campo do religioso / místico, pois este descreve a verdade como a Verdade; e o campo místico, em particular, a considera como a própria transformação do corpo em divindade. Como se eu dissesse a mim mesmo: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, “Conheci a Verdade e a Verdade me libertou”.

Para ficar em um exemplo, apenas, de ceticismo, citemos o catedrático de Oxford, Max Müller, século XIX: “a mitologia é uma aberração mental primitiva, uma enfermidade da linguagem”. Em outras palavras, as palavras de Cristo, o que está encerrado nos Vedas, no Tao, na Torah e tantos outros textos basilares de nossas civilizações não passariam de “aberrações” e “enfermidades”, ou, no máximo, vistos por uma lupa crítica e distanciada.

De forma que a geração de Drummond, um pouco antes e um pouco depois, viu conceber e legitimar uma poesia prosaica, como bem apontado por Orlando Lopes, desprovida de uma cosmovisão mística deliberadamente assumida, como a de Waldo Motta, o que o insere numa corrente milenar de poetas místicos que atravessaram todos os tempos e civilizações.

Em termos de filiação poética, ou corrente poética, a poesia de Waldo está inserida numa linha de leitura / hermenêutica diretamente ligada a dos vates e santos. Nessa lista, inclui-se desde Moisés, Isaías, Ezequiel, e outros tantos profetas / poetas da tradição hebraica, além de São João da Cruz, o pai da poesia espanhola, Santa Teresa D’Ávila, Ângelus Silesius, Kobayashi, Tagore, Rumi, e muitos outros.

Existe uma proximidade geográfica / temporal / literária / poética da poesia de Waldo Motta com a de Drummond, eles estão próximos, é claro, e muitas metáforas de Drummond se penetraram de tal forma nas gerações que o procederam que seria impossível, talvez, fazer qualquer coisa poética no Brasil sem ter se contaminado pelo poeta mineiro. A poesia do Waldo não seria diferente, e ela dialoga sim, diretamente e o tempo todo, com os “modernos”, mas o seu foco último não é dar uma resposta aos “modernos” e prosseguir na agenda moderna. O que Waldo quer é encantar / seduzir o leitor, inclusive os “modernos”, por que não?, para a prática mística, daí a sua filiação ser marcadamente distinta da de Drummond.

A “progressiva laicização da sociedade ocidental” (Orlando Lopes) fez da ironia e do torcer o nariz em relação ao sagrado um traço de nossa poesia, e também de nossa música, e das artes em geral.

Nesse contexto, qualquer texto que se almeje como o revelador da verdade, da salvação da humanidade, da descoberta do pote de ouro no final do arco-íris, só poderá ser ridicularizado / visto à distância não só pela “crítica canônica” mas pelas ciências em geral, pelas mídias, pela “opinião pública”, por tudo aquilo que necessita manter-se laico para manter-se as coisas como estão.

No entanto, por mais que o modernismo na poesia brasileira tivesse isso também como “traço” / “comportamento”, o fato é que a poesia moderna lida com metáforas / símbolos que já foram vastamente utilizados e ressignificados por tradições antiquíssimas - nenhum símbolo, nenhuma metáfora de nenhum poeta do século XX pode ser absolutamente original, pois os elementos da palavra / poética são milenares, assim como suas possibilidades de interpretação.

“De modo que nada há novo debaixo do Sol. Há alguma coisa que se possa dizer: vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados” (Eclesiastes, 1: 9-10).


Na auto-ironia de Drummond, “sorrio pensando: somos os Modernos provisórios, a-históricos...”.

Por isso, Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Mário Faustino, Adélia Prado, Cecília Meireles, o profeta Gentileza, e muitos e muitos outros, vira e mexe, vivenciam esteticamente tal estupefação diante da existência, porque a poesia, ao lidar com metáforas relativas ao que é considerado sagrado pela tradição antiga, acabará – querendo ou não – por se embebedar nas águas do mistério.

“Guardar um segredo / em si e consigo / não querer sabê-lo / ou querer demais”, diz Drummond.

Mas o poeta moderno, tal como a personagem de “Máquina do Mundo” não ousa transpor a ponte, prefere consolar-se em seu pseudo-ateísmo – pseudo, sim, porque Drummond, especificamente, vive brigando com Deus, questionando-o, blasfemando-o, ironizando-o (“nem eu posso com Deus nem ele pode comigo”), e, incrível, também prestando-lhe reverências.

“E pergunta, sem interesse pela resposta: trouxeste a chave?”

Pois a poesia mística perguntaria com interesse pela resposta, e responderia à questão: trouxeste a chave?, com um sonoro sim!

É isso que assusta os céticos na poética mística de Waldo Motta, afinal ele trouxe uma resposta! Ao contrário de poetas muitas vezes propensos a divagações inúteis, Waldo resgata o sentido inicial dos textos sagrados, que são necessariamente poéticos: ele oferece uma resposta, o maná, a água da vida eterna. Esse é o objetivo dos textos sagrados.

A poesia sufi, por exemplo, no dizer de Farid Ud-In Attar e de Rumi, tem a missão de conduzir o leitor da leitura para o encontro direto com Deus. Na poesia mística, a poética salta do papel para a vida, para a sua transcendência e transformação em Deus – esse é seu aspecto fundamental / primordial.

A poesia mística induz, provoca o salto, porque seus símbolos sagrados correspondem, na forma e no conteúdo, a arquétipos / a memória milenar do homem / a desejos de completude / a inconsciência coletiva. Ela preenche um vazio mental carente de uma explicação / projeção simbólica para se fartar / provocar a saciedade / retornar ao estado adâmico, ingênuo e puro. É como se as metáforas, ao serem compreendidas segundo códigos místicos universais, representassem a abertura de um novo portal de conhecimento / comunicação, que lida com universos paralelos de sentido e cria novas realidades e percepções do ser.

É o grande poder da palavra / parábola / alegoria, habilmente utilizada na poesia mística para provocar a transformação do ser – a poesia como ferramenta para o resgate da espiritualidade e do Eu-Divino.

“Todos os pensamentos e emoções, todo o conhecimento e saber, adquiridos pelas primeiras raças ou a elas revelados, encontravam sua expressão pictórica na alegoria e na parábola. Por quê? Porque a palavra articulada tem um poder que os ‘sábios’ modernos não só desconhecem, mas nem sequer suspeitam, por isso, nele não acreditam” (Madame Blavatsky).

A poesia mística requer / solicita um tipo de leitor, ou uma postura de leitura, distinta do leitor prosaico da poesia prosaica. Caso contrário, a recepção só poderia ser mesmo paródica / irônica, ou seja, equivocada, porque esta poesia solicita uma recepção distinta. Esse “leitor místico” é, na verdade-alegoria, um aventureiro em busca do manancial da vida eterna, uma aventura em que está em jogo a própria vida, isto é, o desafio de transcender a vida e de superar a morte – eis a loucura proposta pela poesia mística, através de um jogo de metáforas que induziria a uma prática ritualística: a superação da morte, pelo poder da palavra.

Em síntese: só se poder conhecer a poética de Waldo Motta em toda a sua grandiosidade à luz de uma vivência mística, de fato.

Nenhuma crítica acadêmica será capaz de digeri-la / abarcá-la, seguindo os métodos das ciências literárias, calcados no esforço laico-intelectual / reflexivo / mental, desconsiderando as potencialidades do corpo físico, as práticas eróticas e de amor ao próximo e os rituais da magia da palavra / imagem / símbolo (tarot, cabala, astrologia, numerologia, etimologia etc.) como instrumentos legítimos de conhecimento.

Ter consciência da proposta poética de Waldo Motta é absurdamente diferente de vivenciá-la corporalmente. A consciência mental, sem a vivência corpórea, só nos dá as migalhas de um banquete celestial, que deve ser celebrado com o corpo, visto então como um templo da união entre a carne e o espírito (mente / consciência).

É essa vivência corporal / mística, de união do blasfemo (podre / excremento) com o sagrado (consciência / espírito /mente), que leva ao Conhecimento e à Verdade – esse é o meu testemunho! É importante usar esse termo “testemunho”, pois, além do seu aspecto claramente religioso, isso traz à tona o sujeito, a subjetividade e, antes da estética, a ética, o que nos leva “a ser o que escrevo”, como diz Waldo.

A poesia desse nosso glorioso contemporâneo precisa ser vivenciada como um ato de fé e de amor, próprio de uma postura religiosa, no sentido alegórico do termo, naturalmente. Pois sua poética traz uma proposta de redenção / salvação da humanidade – é a ressurreição da carne, o milagre. "E o milagroso dá medo. Aqueles que foram testemunhas da ressurreição de Lázaro terão ficado horrorizados", nos lembra o personagem do contro de Jorge Luis Borges.

Uma poesia que apresenta: “sim, eu trouxe a chave!”, representa simbolicamente a superação de toda uma poesia que, embora negasse, jamais deixou de lidar com elementos do místico / sagrado, mas de forma esquiva / relutante.

Quero frisar, contudo, que uma reflexão honesta a respeito das poesias modernas que lidam com o místico nos ajudará, sim, a compreender as implicações maiores da poética de Waldo Motta, pois este nobre capixaba inaugura uma hermenêutica própria, que deglute a modernidade e aponta para o novo / antigo.

Seus poemas são a ponta do iceberg. Eles nos remetem a outras leituras (que incluem os poetas modernos, entre muitas outras coisas) e essas outras leituras são fundamentais para se aprofundar no poço, pois, afinal, “o buraco é mais embaixo”.

Inclusive, uma ótima contribuição de Bundo - a obra marcante / inaugural de Waldo - é nos abrir os olhos para as palavras da Bíblia Sagrada, que são continuamente manipuladas ao longo dos séculos para justificar a homofobia, o machismo, o assassinato e toda a sorte de desgraças. Waldo nos ajuda a quebrar os preconceitos em relação aos textos sagrados, olhando-os de forma alegórica, consciente das verdades inscritas / deduzidas pelas metáforas.

E arrisco-me, tal como Murilo Mendes, a anunciar que "o poeta futuro já se encontra no meio de nós. / Ele nasceu na terra / preparada de sensuais e de místicos: / Surgiu do universo em crise, do massacre ente irmãos, /Encerrando no espírito épocas superpostas".

Alguém duvida? Pois então prove!

2 comentários:

  1. quero saber o porq ... do livro é dividido em 4 partes ? é urgente preciso fazer um trabalho sobre isso ... quaquer coisa meu e-mail é :

    dinha-alessandra@hotmail.com

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  2. Isso está claro. Ele segue quatro correntes, Alessandra: social, existencial, metapoética e erótica. A obra funde religião e erotismo, num confronto muito particular e ambivalente. Os eixos filosófico-existenciais se misturam num tipo de poesia meio marginal, meio social, meio pessoal.O poeta evolui em seu estilo, vagando em um universo paralelo e conflitante de maturação espiritual. Mas não adiantam as palavras se você não tiver lido. Waldo ainda é um mistério pra mim também.

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