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domingo, 8 de maio de 2011

Intertextualidade... Um primeiro momento

Esta semana, nos 1º anos, a gente vai começar a falar sobre “Intertextualidade”.
É um assunto interessantíssimo, mas que exige inteligência e percepção.

Segundo a prof. Alfredina Nery* os textos conversam entre si e é preciso entender essa conversa.
# Para entender o que é o conceito de "intertextualidade", um exemplo divertido. O jogo do "não confunda": Não confunda "bife à milanesa" com "bife ali na mesa",
# Não confunda focinho de porco com tomada,
# Não confunda "força da opinião pública" com "opinião da força pública".

Como se vê, é possível elaborar um texto novo a partir de um texto já existente, é assim que os textos "conversam" entre si. Mas não é possível entendermos a referência de um texto a outro, se não conhecermos o texto citado. É comum encontrar ecos ou referências de um texto em outro. A essa relação se dá o nome de intertextualidade.

Para entender melhor a palavra, pense em sua estrutura. O sufixo inter, de origem latina, se refere à noção de relação (entre). Logo, intertextualidade é a propriedade de textos se relacionarem.
Intertexualidade na poesia
Veja como Chico Buarque de Holanda, um dos mais importantes compositores brasileiros, utiliza a intertextualidade em uma canção sua. Em "Bom Conselho", ele faz referências a provérbios populares.

Provérbios populares

Canção de Chico Buarque

“Uma boa noite de sono combate os males”

“Quem espera sempre alcança”

“Faça o que eu digo, não faça o que eu faço"

“Pense, antes de agir”

“Devagar se vai longe”

“Quem semeia vento, colhe tempestade”


Bom Conselho
(Chico Buarque)
Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
(Chico Buarque, 1972)

Chico Buarque inverte os provérbios, questionando-os e olhando-os sob outro ângulo, atribuindo-lhes novos sentidos.

Há vários exemplos de intertextualidade na literatura. Veja, a seguir, como Ricardo Azevedo brinca com o famoso poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

Quadrilha

Quadrilha da sujeira

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou-se com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

(Carlos Drummond de Andrade)


João joga um palitinho de sorvete na
rua de Teresa que joga uma latinha de
refrigerante na rua de Raimundo que
joga um saquinho plástico na rua de
Joaquim que joga uma garrafinha
velha na rua de Lili.
Lili joga um pedacinho de isopor na
rua de João que joga uma embalagenzinha
de não sei o quê na rua de Teresa que
joga um lencinho de papel na rua de
Raimundo que joga uma tampinha de
refrigerante na rua de Joaquim que joga
um papelzinho de bala na rua de J.Pinto
Fernandes que ainda nem tinha
entrado na história.

Ricardo Azevedo (”Você Diz Que Sabe Muito, Borboleta Sabe Mais”, Fundação Cargill)

Enquanto um texto trata do amor não correspondido, por meio da comparação com uma dança (quadrilha), o outro critica o mau hábito de jogar lixo na rua - e mostra como as pessoas prejudicam as outras.

A intertexualidade também é um recurso comumente utilizado pelas crônicas de jornal. Abaixo, veja como José Roberto Torero utiliza uma frase famosa dita por um personagem de Shakespeare. A frase quer dizer, em poucas palavras, que há muita coisa na vida que não compreendemos.

Shakespeare
Deuses do futebol: Urucubaco

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia."


Olímpico leitor, divinal leitora,
há mais coisas entre o céu dos deuses e a terra do futebol do que sonha a nossa vã crônica esportiva.
Determinadas situações do jogo e certas fases pelas quais os times passam não são, como pensam alguns, obra do acaso. Ao contrário, são uma manifestação da vontade de seres superiores, seres que controlam a nossa vida desde o dia em que o Caos gerou a Noite.

(trecho de crônica de José Roberto Torero, Folha de S.Paulo, em17/9/02-pag.D3)

Intertextualidade implícita
Agora, leia o poema a seguir, que aliás, foi uma das questões da prova aberta do vestibular da UFMG, 2010, e veja como ele se parece com um outro tipo de texto...

Receita de herói

Tome-se um homem feito de nada
Como nós em tamanho natural
Embeba-se-lhe a carne
Lentamente
De uma certeza aguda, irracional
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois perto do fim
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim
Serve-se morto.

(Reinaldo Ferreira em "Portos de Passagem" - João Wanderley Geraldi, São Paulo: Martins Fontes, 1991)

Ao falar do como se faz um herói, o poeta usa elementos de uma receita de cozinha. Analise, por exemplo:

# os verbos que indicam ordem (imperativo): "Tome-se", "Embeba-se-lhe", "Agite-se", "toque-se", "Serve-se";
# o advérbio de modo: "lentamente", ou seja, o "modo de fazer", próprio das receitas culinárias;
# em geral, a receita de cozinha termina com a expressão: "Serve-se... (gelado ou frio ou quente etc.). O último verso do poema retoma essa forma da receita, mas o faz de uma maneira realista ou crítica, isto é, um herói "Serve-se morto."

O poema de Reinaldo Ferreira faz uma referência "implícita" às receitas culinárias - a referência não é clara, direta, a nenhuma receita em específico, mas o modo como o texto é construído lembra as tais receitas.

Para terminar, outro exemplo interessante, também de Drummond. Ele fala da "medicalização" do mundo moderno, por meio da criação de palavras que lembram os nomes de diversos remédios...

Receituário Sortido

Calma.
É preciso ter calma no Brasil
calmina
calmarian
calmogen
calmovita.

Que negócio é esse de ansiedade?
Não quero ver ninguém ansioso.
O cordão dos ansiosos enfrentemos:
aspiran!
ansiotex!
ansiex ansiax ansiolax
ansiopax, amigos!


Algumas intertextualidades são famosas e reincidentes nas aulas de literatura. Por isso, eu não vou fazer questão de ser original, e pretendo, como todo mundo, falar do exemplo “clássico” de Renato Russo e de seu “Monte Castelo” absurdamente sensível. É claro que vamos falar de novo dos Engenheiros do Havaí e de Dom Quixote, depois, mas por hora, os meus alunos sabem que precisam ler o cap 10 do livro didático, antes de tudo.
Para servir de exemplo pra quem vai interpretar os sonetos de Camões, Bocage e Gregório nos seminários, eu fiz uma breve análise do soneto que o Renato usou pra compor Monte Castelo, misturando as definições de amor de Camões e de São Paulo, o apóstolos, no cap 13 da célebre carta à Igreja de Corinto. Aquele trecho que fala da caridade...
E o que é a caridade, senão um dos disfarces do amor??

O sonêto 11 de Luiz Vaz de Camões, foi adaptado musicalmente pelo grupo "Legião Urbana". A forma original da música Monte Castelo nos dá uma definição de amor originalmente baseada no soneto e no texto bíblico escrito pelo apóstolo Paulo, na 1ª carta aos Coríntios, cap 13.

Monte Castelo



Legião Urbana
Composição : Renato Russo (recortes do Apóstolo Paulo e de Camões).

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.

É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal,
Não sente inveja ou se envaidece.

O amor é o fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria.

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.

É um estar-se preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.

Estou acordado e todos dormem.
Todos dormem. Todos dormem.
Agora vejo em parte,
Mas então veremos face a face.

É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade.

Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.
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Quanto à poesia...

Soneto 11
(Luiz Vaz de Camões)
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor

O soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”, de Luís Vaz de Camões, trata de um conceito de amor na concepção neoplatônica, e acentua o dualismo entre o sensível e o inteligível, a matéria e o espírito, o finito e o infinito, o mundo e Deus.
O soneto todo é uma definição poética do amor, no qual Camões tenta elucidar o indefinível e explicar o inexplicável, usando imensos contrastes como caracterização de um “mistério”. Segundo o poeta, o Amor é um tipo de ideal superior, perfeito e único, que não almejamos, mas que sentimos sem pedir, sem querer, sem ter escolha...
Amamos como seres imperfeitos e insignificantes, incapazes de entender a grandeza do sentimento, apresentado em sensações físicas comparadas à emoções espirituais. Existe no poema a incerteza da concretização, que é característica do platonismo (quando um dos pólos ama sozinho, incondicionalmente e sem pedir nada em troca).
A natureza paradoxal do amor fica evidente, e é ressaltada por enunciados antitéticos nos quais a segunda parte de cada verso funciona como complemento da primeira, e enfatiza a aproximação de realidades distintas. O aspecto material, sensível “ferida que dói e não se sente” aproxima-se da substância imaterial “ dor que desatina sem doer”, e assim segue, culminando com a indagação final que se refere à essência contraditória do amor.
Pode-se dizer que a forma do soneto evoca o jogo renascentista típico, e desvenda a arte do autor – centrada na capacidade de pensar profundamente mistérios insondáveis da sensibilidade humana, transformados em atos cotidianos. Isso é Camões.



I Coríntios, 13



“Se eu falasse todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, mas não tivesse amor, seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine.

Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, mas não tivesse amor, nada seria.

Se eu gastasse todos os meus bens no sustento dos pobres e até me fizesse escravo, para me gloriar, mas não tivesse amor, de nada me aproveitaria.

O amor é paciente, é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. Ele desculpa tudo, crê tudo, espera tudo, suporta tudo.

O amor jamais acabará. As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá.

Com efeito, o nosso conhecimento é limitado, como também é limitado nosso profetizar. Mas quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito.

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança. Agora nós vemos num espelho, confusamente, mas, então veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido.

Atualmente permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor. Mas a maior delas é o amor.”

Um comentário:

  1. Grande Renato Russo.....a voz da minha geração.....falando de amor inspirado em Camões e no Apóstolo Paulo....impossível dar uma aula sobre intertextualidade sem usar esta música.....
    Parabéns teacher..pelo seu trabalho....

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