Professor por vocação

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Nós...

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Gonçalves Dias -Poemas escolhidos pelo grupo da Jéssyca...

Sofrimento

Meu Deus, Senhor meu Deus, o que há no mundo
Que não seja sofrer?
O homem nasce, e vive um só instante,
E sofre até morrer!

A flor ao menos, nesse breve espaço
Do seu doce viver,
Encanta os ares com celeste aroma,
Querida até morrer.

É breve o romper d'alva, mas ao menos
Traz consigo prazer;
E o homem nasce e vive um só instante:
E sofre até morrer!

Meu peito de gemer já está cansado,
Meus olhos de chorar;
E eu sofro ainda, e já não posso alivio
Sequer no pranto achar!

Já farto de viver, em meia vida,
Quebrado pela dor,
Meus anos hei passado, uns após outros,
Sem paz e sem amor.

O amor que eu tanto amava do imo peito,
Que nunca pude achar,
Que embalde procurei, na flor, na planta,
No prado, e terra, e mar!

E agora o que sou eu? - Pálido espectro,
Que da campa fugiu;
Flor ceifada em botão; imagem triste
De um ente que existiu...

Não escutes, meu Deus, esta blasfêmia;
Perdão, Senhor, perdão!
Minha alma sinto ainda, - sinto, escuto
Bater-me o coração.

Quando roja meu corpo sobre a terra,
Quando me aflige a dor,
Minha alma aos céus se eleva, como o incenso,
Como o aroma da flor.

E eu bendigo o teu nome eterno e santo,
Bendigo a minha dor,
Que vai além da terra aos céus infindos
Prender-me ao criador.

Bendigo o nome teu, que uma outra vida
Me fez descortinar,
Uma outra vida, onde não há só trevas,
E nem há só penar.

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br


A Minha Musa

Minha Musa não é como ninfa
Que se eleva das águas - gentil -
Co’um sorriso nos lábios mimosos,
Com requebros, com ar senhoril.
Nem lhe pousa nas faces redondas
Dos fagueiros anelos a cor;
Nesta terra não tem uma esp’rança,
Nesta terra não tem um amor.
Como fada de meigos encantos,
Não habita um palácio encantado,
Quer em meio de matas sombrias,
Quer à beira do mar levantado.
Não tem ela uma senda florida,
De perfumes, de flores bem cheia,
Onde vague com passos incertos,
Quando o céu de luzeiros se arreia.

Não é como a de Horácio a minha Musa;
Nos soberbos alpendres dos Senhores
Não é que ela reside;
Ao banquete do grande em lauta mesa,
Onde gira o falerno em taças d’oiro,
Não é que ela preside.
Ela ama a solidão, ama o silêncio,
Ama o prado florido, a selva umbrosa
E da rola o carpir.
Ela ama a viração da tarde amena,
O sussurro das águas, os acentos
De profundo sentir.
D’Anacreonte o gênio prazenteiro,
Que de flores cingia a fronte calva
Em brilhante festim,
Tomando inspirações à doce amada,
Que leda lh’enflorava a ebúrnea lira;
De que me serve, a mim?
Canções que a turba nutre, inspira, exalta
Nas cordas magoadas me não pousam
Da lira de marfim.
Correm meus dias, lacrimosos, tristes,
Como a noite que estende as negras asas
Por céu negro e sem fim.
É triste a minha Musa, como é triste
O sincero verter d’amargo pranto
D’órfã singela;
E triste como o som que a brisa espalha,
Que cicia nas folhas do arvoredo
Por noite bela.
É triste como o som que o sino ao longe
Vai perder na extensão d’ameno prado
Da tarde no cair,
Quando nasce o silêncio involto em trevas,
Quando os astros derramam sobre a terra
Merencório luzir.
Ela então, sem destino, erra por vales,
Erra por altos montes, onde a enxada
Fundo e fundo cavou;
E pára; perto, jovial pastora
Cantando passa - e ela cisma ainda
Depois que esta passou.
Além - da choça humilde s’ergue o fumo
Que em risonha espiral se eleva às nuvens
Da noite entre os vapores;
Muge solto o rebanho; e lento o passo,
Cantando em voz sonora, porém baixa,
Vêm andando os pastores.
Outras vezes também, no cemitério,
Incerta volve o passo, soletrando
Recordações da vida;
Roça o negro cipreste, calca o musgo,
Que o tempo fez brotar por entre as fendas
Da pedra carcomida.
Então corre o meu pranto muito e muito
Sobre as úmidas cordas da minha Harpa,
Que não ressoam;
Não choro os mortos, não; choro os meus dias
Tão sentidos, tão longos, tão amargos,
Que em vão se escoam.
Nesse pobre cemitério
Quem já me dera um lugar!
Esta vida mal vivida
Quem já ma dera acabar!
Tenho inveja ao pegureiro,
Da pastora invejo a vida,
Invejo o sono dos mortos
Sob a laje carcomida.
Se qual pegão tormentoso,
O sopro da desventura
Vai bater potente à porta
De sumida sepultura:
Uma voz não lhe responde,
Não lhe responde um gemido,
Não lhe responde urna prece,
Um ai - do peito sentido.
Já não têm voz com que falem,
Já não têm que padecer;
No passar da vida à morte
Foi seu extremo sofrer.
Que lh’importa a desventura?
Ela passou, qual gemido
Da brisa em meio da mata
De verde alecrim florido.
Quem me dera ser como eles!
Quem me dera descansar!
Nesse pobre cemitério
Quem me dera o meu lugar,
E co’os sons das Harpas d’anjos
Da minha Harpa os sons casar!

A Leviana

És engraçada e formosa
Como a rosa,
Como a rosa em mês d’Abril;
És como a nuvem doirada
Deslizada,
Deslizada em céus d’anil.
Tu és vária e melindrosa,
Qual formosa
Borboleta num jardim,
Que as flores todas afaga,
E divaga
Em devaneio sem fim.
És pura, como uma estrela
Doce e bela,
Que treme incerta no mar:
Mostras nos olhos tua alma
Terna e calma,
Como a luz d’almo luar.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.
Assim, beijar-te receio,
Contra o seio
Eu tremo de te apertar:
Pois me parece que um beijo
É sobejo
Para o teu corpo quebrar.
Mas não digas que és só minha!
Passa asinha
A vida, como a ventura;
Que te não vejam brincando,
E folgando
Sobre a minha sepultura.
Tal os sepulcros colora
Bela aurora
De fulgores radiante;
Tal a vaga mariposa
Brinca e pousa
Dum cadáver no semblante.

Seus olhos

Oh! rouvre tes grands yeux dont la paupière tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ememble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tufermes ton coeur.
Turquety




Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
Estrelas incertas, que as águas dormentes
Do mar vão ferir;


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Têm meiga expressão,
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta
De noite cantando, — mais doce que a frauta
Quebrando a solidão,


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
De vivo luzir,
São meigos infantes, gentis, engraçados
Brincando a sorrir.


São meigos infantes, brincando, saltando
Em jogo infantil,
Inquietos, travessos; — causando tormento,
Com beijos nos pagam a dor de um momento,
Com modo gentil.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos,
Às vezes vulcão!


Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.


Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
Desperta a chorar;
E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Não pensa — a pensar.


Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Às vezes do céu
Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
Um vago desejo; e a mente se veste
De pranto co'um véu.


Quer sejam saudades, quer sejam desejos
Da pátria melhor;
Eu amo seus olhos que choram em causa
Um pranto sem dor.


Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
De vivo fulgor;
Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Que falam de amores com tanta poesia,
Com tanto pudor.


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são;
Eu amo esses olhos que falam de amores
Com tanta paixão.

Recordação

Nessun maggior dolore...
Dante




Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d'angústias que meu peito oprime:


Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
por que de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. — Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

Amor! delírio - engano

Y el llanto que en su cólera derrama,
La hoguera apaga del antiguo amor!
Zorrilla




Amor! delírio — engano... Sobre a terra
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,
— Minha alma que na taça da ventura
Vida breve d'amor sorveu gostosa.
Eu e ela, ambos nós, na terra ingrata
Oásis, paraíso, éden ou templo
Habitamos uma hora; e logo o tempo
Com a foice roaz quebrou-lhe o encanto,
Doce encanto que o amor nos fabricara.


E eu sempre a via!... quer nas nuvens d'oiro,
Quando ia o sol nas vagas sepultar-se,
Ou quer na branca nuvem que velava
O círculo da lua, — quer no manto
D'alvacenta neblina que baixava
Sobre as folhas do bosque, muda e grave,
Da tarde no cair; nos céus, na terra,
A ela, a ela só, viam meus olhos.


Seu nome, sua voz — ouvia eu sempre;
Ouvia-os no gemer da parda rola,
No trépido correr da veia argêntea,
No respirar da brisa, no sussurro
Do arvoredo frondoso, na harmonia
Dos astros inefável; — o seu nome!
Nos fugitivos sons de alguma frauta,
Que da noite o silêncio realçavam,
Os ares e a amplidão divinizando,
Ouviam meus ouvidos; e de ouvi-lo
Arfava de prazer meu peito ardente.


Ah! quantas vezes, quantas! junto dela
Não senti sua mão tremer na minha;
Não lhe escutei um lânguido suspiro,
Que vinha lá do peito à flor dos lábios
Deslizar-se e morrer?! Dos seus cabelos
A mágica fragrância respirando,
Escutando-lhe a voz doce e pausada,
Mil venturas colhi dos lábios dela,
Que instantes de prazer me futuravam.
Cada sorriso seu era uma esp'rança,
E cada esp'rança enlouquecer de amores.


E eu amei tanto! — Oh! não! não hão de os homens
Saber que amor, à ingrata, havia eu dado;
Que afetos melindrosos, que em meu peito
Tinha eu guardado para ornar-lhe a fronte!
Oh! — não, — morra comigo o meu segredo;
Rebelde o coração murmure embora.


Que de vezes, pensando a sós comigo,
Não disse eu entre mim: — Anjo formoso,
Da minha vida que farei, se acaso
Faltar-me o teu amor um só instante;
— Eu que só vivo por te amar, que apenas
O que sinto por ti a custo exprimo?
No mundo que farei, como estrangeiro
Pelas vagas cruéis à praia inóspita
Exânime arrojado? — Eu, que isto disse,
Existo e penso — e não morri, — não morro
Do que outrora senti, do que ora sinto,
De pensar nela, de a rever em sonhos,
Do que fui, do que sou e ser podia!


Existo; e ela de mim jaz esquecida!
Esquecida talvez de amor tamanho,
Derramando talvez noutros ouvidos
Frases doces de amor, que dos seus lábios
Tantas vezes ouvi, — que tantas vezes
Em êxtase divino aos céus me alçaram,
— Que dando à terra ingrata o que era terra
Minha alma além das nuvens transportaram.
Existo! como outrora, no meu peito
Férvido o coração pular sentindo,
Todo o fogo da vida derramando
Em queixas mulheris, em moles versos.
E ela!... ela talvez nos braços doutrem
Com sua vida alimenta uma outra vida,


Com o seu coração o de outro amante,
Que mais feliz do que eu, infemo! a goza.
Ela, que eu respeitei, que eu venerava
Como a relíquia santa! — a quem meus olhos,
Receando ofendê-la, tantas vezes
De castos e de humildes se abaixaram!
Ela, perante quem sentia eu presa
A voz nos lábios e a paixão no peito!
Ela, ídolo meu, a quem o orgulho,
A força d'homem, o sentir, vontade
Própria e minha dediquei, — sujeita
À voz de alguém que não sou eu, — desperta,
Talvez no instante em que de mim se lembra,
Por um ósculo frio, por carícias
Devidas dum esposo!...
Oh! não poder-te,
Abutre roedor, cruel ciúme,
Tua funda raiz e a imagem dela
No peito em sangue espedaçar raivoso!
Mas tu, cruel, que és meu rival, numa hora,
Em que ela só julgar-se, hás de escutar-lhe
Um quebrado suspiro do imo peito,
Que d'eras já passadas se recorda.
Hás de escutá-lo, e ver-lhe a cor do rosto
Enrubescer-se ao deparar contigo!
Presa serás também d'atros cuidados,
Terás ciúme, e sofrerás qual sofro:
Nem menor que o meu mal quero a vingança.

2. Se se morre de amor! Gonçalves Dias Se se morre de amor! — Não, não se
[morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve, e no que vê prazer alcança!

Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.

Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração — abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz
[d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes:
Isso é amor, e desse amor se morre!

Amar, e não saber, não ter coragem
Para dizer que amor que em nós sentimos;
Temer qu’olhos profanos nos devassem
O templo, onde a melhor porção da vida
Se concentra; onde avaros recatamos
Essa fonte de amor, esses tesouros
Inesgotáveis, d’ilusões floridas;
Sentir, sem que se veja, a quem se adora.
Compr’ender, sem lhe ouvir, seus
[pensamentos,
Segui-la, sem poder fitar seus olhos,
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,

Arder por afogá-la em mil abraços: Isso é amor, e desse amor se morre! Se tal paixão enfim transborda,
Se tem na terra o galardão devido
Em recíproco afeto; e unidas, uma,
Dois seres, duas vidas se procuram,
Entendem-se, confundem-se e penetram
Juntas — em puro céu d’êxtases puros:
Se logo a mão do fado as torna
[estranhas,
Se os duplica e separa, quando unidos
A mesma vida circulava em ambos;
Que será do que fica, e do que longe
Serve às borrascas de ludíbrio e
[escárnio?
Pode o raio num píncaro caindo,
Torná-lo dois, e o mar correr entre
[ambos;
Pode rachar o tronco levantado
E dois cimos depois verem-se erguidos,
Sinais mostrando da aliança antiga;
Dois corações porém, que juntos batem,
Que juntos vivem, — se os separam,
[morrem;
Ou se entre o próprio estrago inda
[vegetam,
Se aparência de vida, em mal,
[conservam,
Ânsias cruas resumem do proscrito,
Que busca achar no berço a sepultura!

Esse, que sobrevive à própria ruína,
Ao seu viver do coração, — às gratas
Ilusões, quando em leito solitário,
Entre as sombras da noite, em larga
[insônia,
Devaneando, a futurar venturas,
Mostra-se e brinca a apetecida imagem;
Esse, que à dor tamanha não sucumbe,
Inveja a quem na sepultura encontra
Dos males seus o desejado termo!

4 Interpretação do texto. Em “Se se morre de amor”, o lirismo deixa transparecer uma atitude idealizada, devendo ser preservado em sua plenitude. A pureza, então, passa a ser vista como fonte da plena realização do desejo transcendente e, uma vez profanada, gera a dilaceração da plenitude do Eu: “amá-la, [sem ousar dizer que amamos,/ E temendo roçar os seus vestidos,/ Arder por afogá-la [em mil abraços:/ Isso é amor, e desse amor se morre!”. A plenitude concretiza-se na impossibilidade, o sujeito idolatra a amada à distância; é como se a proximidade destruísse a idealização. Nos momentos em que o desejo de profanação materializa- se, o sujeito transfigura o “perfeito”, degradando a figura divinizada.
Essa possibilidade de degradação imanente ao espírito romântico, muitas vezes proporciona um amargor em relação à visão positiva do sujeito com o mundo (Eu pacificado pelo natural). Nesse caso, o pessimismo invade o espaço eufórico, levando à angústia e à melancolia. O universo natural, transfigurado em negatividade e sofrimento, passa a agressor, perpetuando o desequilíbrio do Eu. É o “mal du siècle”, momento em que o Eu torna-se irônico por assumir uma posição consciente face sua inquietação com o mundo.
4.1. Interpretação deste texto à luz do pensamento de Alfonso López Quintás, pensador e educador espanhol que muito tem escrito sobre a literatura como “lugar” privilegiado de compreensão da vida humana por Gabriel Perissé,
Doutorando em Educação (FEUSP). Um poema representativo é aquele que transcende os limites de sua criação no tempo e no espaço. É aquele que transcende as idiossincrasias de seu criador, as circunstâncias próprias de uma mentalidade, de uma época, de um movimento literário. É aquele que faz sentido para outros leitores que não compartilham aquela época, aquelas idiossincrasias, aquela mentalidade etc., em virtude das quais o poema se tornou o que é.
Um poema representativo não representa apenas uma data ou uma personalidade, mas um aspecto essencial da vida humana. Se existe um especial prazer na arte da crítica literária, é o de detectar essa transcendência, estabelecendo uma relação empática e objetiva entre o que foi escrito e a minha (a nossa) concreta realidade, mesmo que entre leitor e autor existam abismos históricos, ideológicos e lingüísticos.
O encontro entre Gonçalves Dias e Alfonso López Quintás realiza-se nesse “lugar” único da transcendência. O poeta brasileiro romântico e o pensador espanhol, contemporâneo nosso, conversam diante de nós.
O poema Se se Morre de Amor! parece ter sido composto por encomenda para ilustrar uma das mais promissoras intuições de Quintás. A intuição de que o ser humano está sujeito a duas experiências que, à primeira vista, parecem semelhantes: a experiência do êxtase e a experiência da vertigem.
Alfonso López Quintás é um dos pensadores contemporâneos mais preocupados com o poder formativo da experiência estética. Para ele, enquanto professor, a contemplação da arte e a reflexão filosófica constituem duas vertentes de um só projeto educativo. Ética e estética, beleza e lógica, criatividade e intuições metafísicas, mística e poesia são “condimentos” indispensáveis para a formação integral de uma pessoa. Em seus livros e palestras, Quintás lê A metamorfose, de Kafka, O túnel, de Ernesto Sábato, Bodas de Sangue, de Lorca, e outras obras de outros autores (Sartre, Camus, Miguel de Unamuno, Hermann Hesse), descortinando a densidade humanística que uma leitura crítica baseada em simples formalismos estéticos mal consegue identificar.
A cooperação entre filosofia e literatura é, nessa perspectiva, fundamental. Sem prejudicar a fruição literária, Quintás, ao contrário, intensifica-a, trazendo à luz “lo que Unamuno denominaba ‘intrahistoria’ de los personajes, la peripecia íntima que viven, los ‘ámbitos de realidad’ que crean o que destruyen, los procesos de vértigo o de éxtasis que siguen, los mundos que construyen o que aniquilan...”
O método lúdico-ambital que Quintás propõe para analisar textos literários exige que o leitor “brinque” com esses textos, que os vivencie como um jogo, como um âmbito em que seja possível refazer pessoalmente as experiências fundamentais ali descritas, ali vivenciadas de um modo “irreal”, “ficcional”.
Ficcional e irreal, mas de modo algum inautêntico. Vemos um indígena australiano “brincando” de canguru (essa imagem é sugerida por Huizinga no clássico Homo Ludens[4]), envolvido, em êxtase, concentrado nos movimentos da sua dança mágica, empenhado em atrair a essência do animal, em ser um símbolo vivo do animal. Esse jogo, essa brincadeira, é uma das tarefas mais sérias, mais sagradas e decisivas para o selvagem. Ele “faz de conta”, “finge”, “imagina” que é canguru, mas na verdade está captando o ser do canguru, está celebrando a existência do canguru, porque acredita que o canguru e ele são uma só realidade, porque a ele se une poética, teatral e misticamente.
Portanto, a leitura criativa de um poema, de um conto, de um romance, exige “dançar conforme a música” do texto, para captar de um modo pessoal os aspectos relevantes da obra em questão, sem deixar-se fascinar (e distrair), por exemplo, pelas “receitas” analíticas da moda, como o foram, a seu tempo, o estruturalismo e as leituras “marxistas” ou “heideggerianas” da obra literária.
A força intrínseca do poema de Gonçalves Dias acima transcrito radica na antítese “amor generoso” x “amor egoísta”. Na primeira estrofe, há uma “argumentação”. Levanta-se como que uma hipótese: morre-se de amor, quando esse amor (se assim o chamam) é mera empolgação causada por um ambiente colorido, animado, simpático, regido pelas seduções, pela cintura fina de uma moça, pela música animada, pelo perfume inebriante das flores, pelas luzes ofuscantes?
O prazer que a alma alcança (verso 7), ouvindo essas músicas, essas vozes em estado de exaltação, vendo essas imagens insinuantes, leva ao delírio, à vertigem, à tontura, a uma sensação de redemoinho. A um arrebatamento negativo, mais excitação do que propriamente enlevo e encanto. E desse amor não se morre, porque “isso amor não é” (verso 13).
E como se sabe que não é amor? A fugacidade é um dos sinais. E a sensação de vazio, tão logo a ambientação fascinante, excitante, delirante, desaparece. Assim que a orquestra emite o último acorde (verso 15), assim que o dia amanhece e a luz natural substitui o clarão que mantinha o ambiente iluminado (verso 16), vem à tona o tédio, sente-se o mais profundo cansaço.
Esse cansaço e esse tédio não são a morte, no sentido de um “sair de si mesmo”. Desse “amor” ninguém morre quando acaba (verso 18). Uma vez que acaba! Precisamente porque acaba!
A segunda estrofe define o amor como um estado de êxtase, numa abertura (verso 20) generosa de corpo, sensibilidade e alma a valores que levam o homem ao extremo de si mesmo: à beleza, ao grandioso, à virtude — até mesmo a crimes (verso 22), porque por amor se pode fazer “loucuras” aos olhos de muitos —, à compreensão do natural e do divino, do terreno e do celeste, das mesmas flores que estavam na festa alucinante mas agora transmitem a imagem da vida em plenitude (versos 23-5).
A experiência extática do amor não é estática. Leva à descoberta de uma festa do coração que convive com a tristeza e com as lágrimas (versos 26-9), leva à descoberta dessa realidade paradoxal: somos os mais felizes e os mais infelizes dos seres, quando amamos (verso 32).
E desse amor se morre! Morre-se porque é um amor verdadeiro. “Morrer de amor” é uma loucura, é um “crime”, é sucumbir por ter vivido um sentimento fortíssimo. Mas a pergunta retorna: e agora, como se sabe que esse amor é verdadeiro?
A exaltação do amor egoísta assemelha-se, mas nada tem a ver com o entusiasmo do amor generoso. Sentir vertigem não leva à morte. Pode-se desmaiar depois de uma noite de orgia. Pode-se perder os sentidos depois de uma falsa experiência de amor. Se o desejado não é autenticamente desejável, quem deseja não “morre de amor”, simplesmente fica alienado, perde-se, frustra-se.
Contudo, “si lo deseado es deseable, en cuanto ofrece posibilidades de juego creador ao hombre, éste no sale de sí, se eleva a lo mejor de sí mismo. Es la experiencia de éxtasis, que confiere al hombre su cabal identidad.”
A experiência filosófica e mística do ocidente vê um sentido na idéia da morte que não significa destruição pura e simples. O morrer pode bem ter o sentido de completar os próprios dias, de alcançar a plenitude da vida, de ultrapassar a mediocridade, e, assim, estar pronto a entrar no plano do que é valioso, mais valioso do que a própria vida.
A brasileiríssima gíria “lindo de morrer” expressa essa intuição. O que se vê é tão bonito, tão extraordinariamente lindo, que quem o contempla sente-se perto da morte, sente-se chamado a entregar a alma, num estado de êxtase, como se viver já não tivesse a menor importância.
A frase de Sófocles — “para o morto não existem mais armadilhas” — também pode ajudar-nos a entender a morte como uma libertação das ciladas dos baixos instintos, dos interesses escusos, dos pseudo-amores, das ilusões, dos auto-enganos.
“Morrer de amor” é então viver plena e somente de amor. Vale a pena entregar tudo para viver/morrer um grande amor. Vinícius de Moraes resume tudo na última estrofe de seu Soneto do amor total:
“E de te amar assim muito e amiúde, É que um dia em teu corpo de repente Hei de morrer de amar mais do que pude.” O amante que “morre de amor” dá o testemunho mais vivo de seu amor. É um martírio. O martírio é a morte sem o aniquilamento do mais essencial, do mais importante. Ao contrário, o martírio é a glorificação do essencial.
Na terceira estrofe do seu poema, Gonçalves Dias capta novos matizes do êxtase amoroso. Quem ama receia banalizar, expor inutilmente, medir o amor inesgotável (versos 34-5), dado que se trata de algo sagrado, valioso, “a melhor porção da vida” (verso 37).
Esse cuidado para não ferir o amor e a quem se ama, essa sensibilidade aguçada de quem ama, esse pudor e esse ardor, esse desejo de união absoluta (versos 41-46) configuram o êxtase ascensional, com traços de experiência do indizível, como num estado de adoração — sentir sem ver, compreender sem ouvir, saber sem poder dizer. Esse misto de impotência e onipotência, de receio e de integração, pertence ao amor verdadeiro. E desse amor se morre (verso 47).
O afeto recíproco (verso 50) cria um âmbito de plenitude: um “puro céu d’êxtases puros” (verso 53). É a união dos que se amam, e a constatação dessa pureza remete, não ao puritanismo, mas à genuinidade, tal como quando falamos “ar puro”, “água pura”, dizendo implicitamente: “ar ar”, “água água”, ar que é ar e água que é realmente água.
O amor puro. Mas desse amor também se morre! Quando, bruscamente, interfere a “mão do fado” (verso 54). É de tal ordem a união que, se porventura os que se amam precisam separar-se, morrem os dois, ou desejam morrer (verso 65), uma vez que esse amor é a própria vida.
Quem uma vez experimentou o êxtase do amor, o amor verdadeiro, portanto, já não pode viver sem ele. A última estrofe retrata o amante que sobreviveu à própria destruição (verso 70) e que, numa insônia sem fim, vê a imagem de quem ama (verso 75), e inveja aqueles que encontram o fim do seu sofrimento no cemitério.
Também desse amor se morre, ou pelo menos se deseja morrer — trata-se do amor que não sucumbe à dor (da separação) tamanha (verso 76), mas já não se habitua nem espera a vertigem. Está entre as sombras da noite (verso 73), e ao mesmo tempo fora do âmbito de luz que o amor instaura.
As noções de “êxtase” e “vertigem” propiciam uma leitura criativa de textos como este de Gonçalves Dias. Pois convidam o leitor a distinguir com mais lucidez as realidades que o habitam e o circundam.
No caso do amor que leva à morte, podemos discernir melhor os matizes desse amor, dessa morte, conquistando a consciência de que as palavras, sobretudo quando poeticamente em ação, assumem novos sentidos que transcendem os significados do dicionário, por mais preciso que este seja.
5. Vocabulário. - Ânsia: desejo intenso
- Apetecido: extremamente desejado; cobiçado
- Arrebatar: atrair ou sentir-se atraído; enlevar(-se), encantar(-se), extasiar(-se)

- Assomar: atingir, chegar
- Avaro: que ou aquele que é obcecado por adquirir e acumular dinheiro; sovina
- Borrasca: contratempo que gera transtorno ou inquietação; contrariedade inopinada
- Brando: que se caracteriza pela docilidade, pela flexibilidade; afável

- Cimo: a parte superior de uma coisa que tem maior altura do que comprimento ou largura; a parte de cima; alto, topo
- Clarão: claridade intensa
- Derradeiro: que ocupa uma posição extrema no espaço
- Desventura: ausência de ventura; má fortuna; desgraça, desaventura, infortúnio
- Devaneio: produto da fantasia, da utopia; sonho, quimera
- Devassar: invadir, observar, conhecer por completo
- Ditoso: que tem boa dita; venturoso, feliz, afortunado
- Ente: o que existe, o que é; ser, coisa, objeto
- Ermo: diz-se de ou lugar desabitado, deserto

- Escárnio: atitude ou manifestação ostensiva de desdém, de menosprezo, por vezes indignada - Esvaecer: perder o ânimo, as forças; esmorecer - Êxtase: estado de quem se encontra como que transportado para fora de si e do mundo sensível, por efeito de exaltação mística ou de sentimentos muito intensos de alegria, prazer, admiração, temor reverente etc.
- Fado: destino, sorte, estrela; o que necessariamente tem de ser; vaticínio, decreto do destino - Festejo: reunião, encontro entre pessoas, organizado por um ou mais indivíduos em espaço público ou privado; festa
- Futurar: maginar o que ainda não aconteceu; antever, prenunciar, prognosticar
- Galardão: prêmio, homenagem, glória
- Intercalar: que se mete de permeio

- Ludíbrio: ato ou efeito de ludibriar, enganar
- Misérrimo: extremamente mísero
- Píncaro: o ponto mais elevado de um monte; cume
- Profano: que não pertence ao âmbito do sagrado

- Proscrito: exilado, banido, degredado
- Raiar: estar próximo a; beirar, aproximar-se
- Recatar: guardar(-se) com recato; pôr(-se) em recato; resguardar(-se), acautelar(-se),

defender(-se)
- Recíproco: que se alternam entre duas pessoas, uma em resposta à outra
- Resumir: fazer consistir ou consistir apenas em; concentrar(-se); limitar(-se), reduzir(-

se)
- Sarau: reunião festiva, ger. noturna, para ouvir música, conversar, dançar
- Soledade: estado de quem está ou se sente só; solidão
- Sucumbir: não resistir, ser vencido; ceder, entregar-se
- Templo: lugar digno de respeito
- Termo: fim, remate ou conclusão no espaço ou no tempo
- Ventura: sorte (boa ou má); fortuna, destino, acaso

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