Professor por vocação

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sexta-feira, 9 de julho de 2010

Junqueira Freire




A POESIA ATORMENTADA DE JUNQUEIRA FREIRE
O poeta e religioso católico baiano Luís José Junqueira Freire (Salvador 1832 – Idem 1855) fez os estudos primários e os de latim precariamente em virtude da saúde abalada. Em 1849, matriculou-se no Liceu Provincial de Salvador no qual se destacou como excelente aluno. Para fugir da pressão familiar ingressou na “Ordem dos Beneditinos”, em 1851. Na clausura do Mosteiro de São Bento, em Salvador, viveu amargurado, revoltado e triste pois não manifestava a menor vocação monástica, mesmo porque tinha tomada a decisão irrevogável dos votos perpétuos. Nesse período, porém, pôde ler muito e dedicar-se à poesia. Trabalhou, também, dentro do mosteiro, como professor; atendia, então pelo nome de Frei Luís de Santa Escolástica Junqueira Freire. Pediu a secularização em 1853, recurso que o libertava das disciplinas religiosas, mas que, por força dos votos perpétuos, tinha que permanecer sacerdote. De volta à casa da mãe em 1854, redigiu uma pequena autobiografia. Pouco antes de sua morte, aos 23 anos, fez publicar seu único livro em vida que intitulou “Inspirações do Claustro”. A obra de Junqueira enquadra-se na terceira fase do romantismo, também chamada de ultra-romantismo, ligado aos padrões do neoclassicismo. O equívoco na sua escolha monástica refletiu seriamente nos seus escritos. Seu estilo mais fechado não permitiu ao poeta expressar todos os sentimentos reprimidos. A obra de Junqueira Freire mereceu um louvor, como também uma crítica por parte do poeta, contista, cronista, romancista, dramaturgo e ensaísta fluminense Machado de Assis (Rio de Janeiro 1839 – Idem 1908). Foi louvada pela forma sincera como retratou todo o drama de uma pessoa presa a uma falsa vocação; crítica ao modo dessa poesia que caiu no genérico e no prosaico. Machado ainda disse que os versos de Junqueira não são palestras de sacristia nem mexerico de locutório, mas sim um livro profundamente sentido, uma história dolorosamente narrada em versos, muitas vezes duros, mas evidentemente saídos do coração. A sua breve e sofrida passagem pelo mosteiro forneceram ao poeta as características de sua personalidade, conflitantes, porém. Disse Junqueira no prólogo de Inspirações do Claustro: “Cantei o monge, porque ele é escravo, não da cruz, mas do arbítrio de outro homem. Cantei o monge porque não há ninguém que se ocupe de cantá-lo. É por isso que cantei o monge, cantei também a morte. É ela o epílogo mais belo de sua vida: e seu único triunfo”. O sofrimento e a clausura deram a Junqueira o tormento que a sua alma precisava para nos presentear com belíssimos poemas. O poeta é o patrono da Cadeira nº 25 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Franklin Dória (Itaparica 1836 – Rio de Janeiro 1906) poeta, orador e político baiano. Obras: Inspirações do Claustro (1855); Elementos de Retórica Nacional (1869); Obras, edição crítica por Roberto Alvim, 3 vols. (1944); Junqueira Freire, org. por Antonio Carlos Vilaça (Coleção Nossos Clássicos, nº 66); Desespero na Solidão, org. por Antonio Carlos Vilaça (1976); Obra poética de Junqueira Freire (1970). Fiquemos, portanto, com três raríssimas jóias produzidas pelo vasto universo da mente de Junqueira:

Teus Olhos

Que lindos olhos
Que estão em ti!
Tão lindos olhos
Eu nunca vi...

Pode haver belos
Mas não tais quais;
Não há no mundo
Quem tenha iguais.

São dois luzeiros,
São dois faróis:
Dois claros astros,
Dois vivos sóis.

Olhos que roubam
A luz de Deus:
Só estes olhos
Podem ser teus.

Olhos que falam
Ao coração:
Olhos que sabem
Dizer paixão.

Têm tal encanto
Os olhos teus!
— Quem pode mais?
Eles ou Deus?


Sonho

Era um bosque, um arvoredo,
Uma sagrada espessura,
— Mitológica pintura
Que o romantismo não faz.
Era um sítio tão formoso,
Que nem um pincel romano,
Nem Rubens, nem Ticiano
Copiariam assaz.

Ali pensei que sonhava
Com a donzela que me inspira,
Que põe-me nas mãos a lira,
Que põe-me o estro a ferver;
Que me acalenta em seu colo,
Que me beija a vasta crente,
Que me obriga a ser mais crente
No Deus que ela julga crer.

Sonhei com a visão dourada,
Que todo o poeta sonha,
— Idéia gentil, risonha,
Tão poucas vezes real!
Que só, com o peito abafado,
Se vai de noite em segredo
Contar no denso arvoredo
Ao cipreste sepulcral.

Mas, despertando do sonho,
Que aos homens não se revela,
Achei comigo a donzela,
Me apertando o coração,
E ainda presa a meus lábios,
Entre um riso, entre um gemido,
Murmurou-me ao pé do ouvido
— Que não era um sonho, não. —

E não mais, enquanto vivo,
Deixarei esta espessura,
— Mitológica pintura
Que o romantismo não faz.
Era um sítio tão formoso,
Que nem o pincel romano,
Nem Rubens, nem Ticiano
Copiariam assaz.


Soneto

Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.

Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.

Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.

Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.



Enzo Carlo Barrocco
Publicado no Recanto das Letras em 24/04/2007
Código do texto: T461759

À Morte de Garrett

No doce arranco
Que o céu lhe abrira,
Garrett ouvia
Seus próprios carmes
De terno amor.

E aos brancos lábios
Franco, improviso,
Lhe veio um riso
Em vez de angústias,
Em vez de dor.

Morreu poeta,
Ledo e gostoso:
Morreu ditoso,
Cingido, ornado
Dos cantos seus.

Lá foi com os anjos,
Que o inspiraram,
Que o sublimaram,
Cantar saudades
Ao pé de Deus.

Cantai, donzelas
Da pátria dele,
Cantai aquele
Hino de amores,
Hino gentil.

Ouvi que entoam
Seu hino etéreo
Em som funéreo
As belas virgens
Do meu Brasil.

(...)

Martírio

Beijar-te a fronte linda:
Beijar-te o aspecto altivo:
Beijar-te a tez morena:
Beijar-te a rir lascivo:

Beijar o ar, que aspiras:
Beijar o pó, que pisas:
Beijar a voz, que soltas:
Beijar a luz, que visas:

Sentir teus modos frios:
Sentir tua apatia:
Sentir até repúdio:
Sentir essa ironia:

Sentir que me resguardas:
Sentir que me arreceias:
Sentir que me repugnas:
Sentir que até me odeias:

Eis a descrença e crença,
Eis o absinto e a flor,
Eis o amor e o ódio,
Eis o prazer e a dor!

Eis o estertor de morte,
Eis o martírio eterno,
Eis o ranger de dentes,
Eis o penar do inferno!



Morte

(Hora de delírio)

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és o termo
De dois fantasmas que a existência formam,
— Dessa alma vã e desse corpo enfermo.

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és o nada,
Tu és a ausência das moções da vida,
Do prazer que nos custa a dor passada.

Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és apenas
A visão mais real das que nos cercam,
Que nos extingues as visões terrenas.

(...)

Amei-te sempre: — e pertencer-te quero
Para sempre também, amiga morte.
Quero o chão, quero a terra — esse elemento;
Que não se sente dos vaivéns da sorte.

Para tua hecatombe de um segundo
Não falta alguém? — Preenche-a tu comigo.
Leva-me à região da paz horrenda,
Leva-me ao nada, leva-me contigo.

Miríadas de vermes lá me esperam
Para nascer de meu fermento ainda.
Para nutrir-se de meu suco impuro,
Talvez me espera uma plantinha linda.

Vermes que sobre podridões refervem,
Plantinha que a raiz meus ossos ferra,
Em vós minha alma e sentimento e corpo
Irão em partes agregar-se à terra.

E depois nada mais. Já não há tempo,
Nem vida, nem sentir, nem dor, nem gosto.
Agora o nada, — esse real tão belo
Só nas terrenas vísceras deposto.

(...)

O Hino da Cabocla

(Canção nacional)

Sou índia, sou virgem, sou linda, sou débil,
— É quando vós outros, ó tapes, dizeis!
Sabei, bravos tapes! — que eu sei com destreza
Cravar minhas setas no peito dos reis!

Sabei que não canto somente prazeres,
Sabei que não gemo somente de amores:
Sabei que nem sempre vagueio nos bosques,
Sabei que nem sempres me adorno de flores.

Meus lábios não beijam os lábios do amante,
Meus lábios combatem tirânicas leis:
Meus lábios são como trovões estupendos,
Que cospem coriscos na face dos reis!

Quem viu-me nas liças, quem viu-me covarde,
Aos silvos da flecha — quem viu-me escorar?
Eu sou como a onça, pequena e valente,
Eu sei os perigos da guerra afrontar!

Enchi meus carcases de agudas taquaras,
Que iguais nas florestas jamais achareis;
E dessa taquaras fatais é que pendem
As vidas infames de todos os reis.

Sou índia, não nego: — meus finos cabelos
— Qual juba ferina — bem longos que são!
Porém esse peito, que férvido pulsa,
É másculo, ó tapes! — ou é de um leão!

(...)



O Jesuíta

Era longe — bem longe: e eu vim primeiro
Cindindo as ondas desse mar profundo.
E por amor da Cruz vaguei sozinho
Nas ínvias matas desse novo mundo.

O tamoio gentil ervava as setas,
Quando pelos vergéis, tão seus, me via:
E co'os olhos fosfóricos ardendo
A taquara fatal a mim tendia.

E tendia a taquara, — mas ao ver-me
Quão sem temor e quão inerme estava,
Trocando em doce o seu olhar fogoso,
O arco e a seta pelo chão rojava.

De mim as tribos bárbaras, indômitas,
De mim o verbo do evangelho ouviram.
E ergui a cruz nos píncaros dos montes,
E após o verbo os povos me seguiram!

Eu disse às tribos: — Todas vós sois ricas,
— Que o ouro e a prata o solo vosso esmalta.
Sois ricas tribos, — mas não sois felizes,
Porque uma crença de um só Deus vos falta.

E eu dei às tribos uma crença doce,
Qual uma chuva de maná celeste:
E as tribos foram desde então felizes,
Qual flor pomposa que os jardins reveste.

E quando os reis da terra se esqueceram
Das tribos dadas a seu cetro forte,
Eu levantei-me, e disse aos reis da terra,
— O povo geme: Transmudai-lhe a sorte. —

Eternos templos eu ergui sozinho,
Eternos como a duração da terra.
E sozinho sagrei altares tantos
Ao Deus que aos ímpios c'o trovão aterra.

Eu dei às tribos uma crença doce,
Eu levantei alcáceres eternos.
Deram-me os homens proscrição e morte,
Deram-me em prêmio as fezes dos infernos.

Vai

Vai, maldita, vai, víbora sangrenta,
Mulher impura, e ávida de infâmias!
O mundo é amplo: arroja-te em seu gúrgite.
Mereces bem seu lodo.

(...)

Vai, desgraçada, vai. Farta-te em crimes,
Sacia as garras, cobre-te de sangue
É esse o gênio teu. Corre, — que eu vejo
Teu exemplar castigo.

Vai, desgraçada, vai. Riso da plebe,
Indigna até de maldições severas,
Hei de ver-te amanhã pedindo um óbolo,
Errando pelas praças.

E adornada de fétidos andrajos,
A mão leprosa estenderás, ao ver-me,
E a boca túmida abrirás mendiga,
Pedindo-me uma esmola.

E eu com o nobre olhar que já receias,
Hei de talvez passar sereno e alegre,
Ou, tremendo tocar-te as mãos imundas,
Jogar-te algum dinheiro.

Tal é minha vingança. A ouvir-me agora,
Um riso, um riso estólido desprendes.
Ah! tu não crês ainda na justiça
Do Deus que nos escuta!

Ri-te outra vez de minhas frases duras!
Sim: tens razão, incrédula. — Mas corre,
Corre depressa, — que amanhã teu riso
Já não será tão grande.

Vai, maldita, vai, víbora sangrenta,
Mulher impura, e ávida de infâmias!
O mundo é amplo, arroja-te em seu gúrgite,
Mereces bem seu lodo.



O Arranco da Morte



Pesa-me a vida já. Força de bronze

Os desmaiados braços me pendura.

Ah! Já não pode o espírito cansado

Sustentar a matéria.



Eu morro, eu morro. A matutina brisa

Já não me arranca o riso. A rósea tarde

Já não me doura as descoradas faces,

Que gélidas se encovam.



O noturno crepúsculo caindo

Já não me lembra o escurecido bosque

Onde me espera a meditar prazeres

A bela que eu amava.



A meia-noite já não traz-me em sonhos

As formas dela - desejosa e lânguida -

Ao pé do leito, recostada em cheio

Sobre meus braços ávidos.



A cada instante o coração vencido

Diminui um palpite; o sangue, o sangue,

Que nas artérias férvido corria,

Arroxa-se e congela.



Ah! É chegada a minha hora extrema!

Vai o meu corpo dissolver-se em cinza;

Já não podia sustentar mais tempo

O espírito tão puro.



É um cena inteiramente nova.

Como será? - Como um prazer tão belo,

Estranho e peregrino, e raro, e doce,

Vem assaltar-me todo!



E pelos imos ossos me refoge

Não sei que fio elétrico. Eis! Sou livre!

O corpo que foi meu, que lodo impuro!

Caiu, uniu-se à terra.

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